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A newsletter ainda não foi inventada

O que a gente faz aqui é só um rascunho


New York Movie (1939), Edward Hopper.
New York Movie (1939), Edward Hopper.

i.


Pelo menos uma vez por semana, recebo uma mensagem de SMS dirigida a um tal de Flávio. São sempre da Quero-Quero, uma rede de lojas de eletrodomésticos bastante popular no Rio Grande do Sul. Parece que o Flávio está devendo para eles há uns meses, talvez anos. Há algum tempo, recebi a notificação de que um cobrador foi enviado ao endereço dele, e que ele não foi localizado. De tempos em tempos, também ligam. Quando acontece isso, explico que não sou o Flávio, que não conheço o Flávio, mas ainda insistem: “Você realmente não conhece nenhum Flávio?”, como se estivessem a um passo de perguntar: “Tem certeza de que você não é o Flávio?”


Não lembro como é que começou, mas eu devia estar numa pindaíba daquelas. Eu tinha um número pré-pago, deixei de recarregar por meses e perdi a linha. Foi então que precisei pegar um novo número. Quando instalei o WhatsApp, começaram a me procurar pelo nome de Isolda, uma simpática senhorinha de São José do Norte que também perdeu a linha por falta de recarga. Talvez estivesse com problemas financeiros, talvez só tivesse um neto atento o suficiente para avisá-la que precisava recarregar de tempos em tempos.


Nas primeiras semanas, as interações foram excessivas. Eu estava em grupos de oração, recebi mensagens de corrente, fui convidado para o aniversário de 3 anos do Miguel e, muitas vezes, fui indagado: “Quem é você?”. Pouco a pouco, as vozes se tornaram murmurinho, o murmurinho se tornou ininteligível e restou o silêncio.


Muitas vezes, me perguntei por onde andaria a Isolda e o que o Flávio estaria fazendo. Até que, na segunda-feira passada, recebi um SMS cujas palavras soaram como um eco de algum canto esquecido do universo: “CAIXA: Olá, Isolda, avalie, sem custo, com nota 1 (insatisfeito) a 5 (satisfeito), o atendimento prestado pela Agenda São José do Norte em 16/dez.”


Então, o telefone tocou hoje pela manhã. “Lucas Rosa?”, disse uma voz do outro lado da linha. “Sim, sou eu”, respondi automaticamente. “Ah, ótimo. Estou ligando para resolver aquela questão com seu número de telefone”. Fiquei em silêncio por um momento, tentando processar. “Desculpe, quem está falando?”. “Lucas Rosa”, respondeu a voz, firme, familiar. “Precisamos conversar sobre as mensagens que você anda recebendo. E sobre a sua dívida na Quero-Quero”. “Desculpe, não entendo. Quem é?”, olhei para a xícara de café, esfriando ao lado do computador, tentando encontrar sentido naquelas palavras. “Lucas”, ele repetiu, “você está usando o meu número e eu preciso dele”. “O que é isso? Quem é que tá falando?”. “Aquela newsletter que você esqueceu está prestes a retornar e, quando o telefone tocar de novo, eu não serei eu”. ■



ii.


Dezembro chegou. Dezembro, meu velho. O mês doze de doze. Se você ainda não se deu conta, deixa eu sublinhar: estamos na finaleira semestre, a menos de 40 horas pro Natal. Isso mesmo, já já você vai ter que encarar aquele seu tio que votou no Levy Fidelix (que, segundo ele, é um intelectual) e que acha que a pandemia foi uma grande conspiração dos grupos farmacêuticos. E, pra completar, acabamos de passar por um mercúrio retrógrado, péssimo momento para comunicação e organização – ótimo pra retomar uma newsletter, né?


Estamos todos muito cansados, fodidos, atolados em problemas. Familiares doentes, contas pra pagar, gente que nos entristece cada vez que abrem o microfone na reunião. Trabalhamos até o pescoço e ando sem energia nem pra assistir um filme ou ler um livro. Então, ficamos soterrado no feed infinito. Com sorte, assistimos alguma porcaria descerebrada como “Muquiranas Brasil” antes de deitar a cabeça no travesseiro e descansar pra, no dia seguinte, acordar maquinalmente e encarar as demandas da lista que anotamos no Keep, no To Do, no Notion, no Trello, no WhatsApp, ou num caderninho velho mesmo. Apertamos botões. Quase sem espaço para sonhar.


Ligamos a tevê na hora do almoço para saber o que está rolando, ouvimos obliquamente, olhamos de soslaio e rolamos mais uma vez o feed entre uma garfada e outra: o desastre eminente nas eleições municipais, o êxito inconteste da direita, as promoções duvidosas da Black Friday, as trapalhadas senis do Joe Biden, a lista de melhores filmes do ano feita pelo Obama, a máquina de fazer memes com Haddad da extrema-direita, o assédio (depois desmentido) de Francis Ford Coppola a uma figurante de Megalopolis, a dublagem por inteligência artificial do Will Smith, o tiro na orelha de Trump e sua fotografia que supostamente já entrou pra história, o Ozempic, a bifurcação da língua da Andressa Urach, o enfisema pulmonar de David Lynch, o cruzeiro do Neymar, a privatização das praias, Eduardo Paes usando Ozempic e prometendo para o SUS, a geração Z apavorada com “a pornografia explícita” de Pobres Criaturas, a morte do Silvio Santos, as Olimpíadas, a febre do Twitter pelas promoções da Granado, o fim do Twitter, a volta do Twitter, a prisão da Deolane, a soltura da Deolane, a segunda prisão da Deolane (afinal, quem é Deolane, porra?), a cadeirada no Marçal, a prisão de Gusttavo Lima, “a gente vai descer pra BC”, a dúvida se Tim Maia cantou “acende o farol” ou “send for all”, a prisão do General Braga Netto, e por aí vai.


Assim a gente vai, as informações vão se acumulando, tentando agarrar a nossa atenção cada vez mais fragmentada, sempre em busca de mais novidades fresquinhas, e pouco a pouco vai se diminuindo a exposição de uma notícia e de outra, sempre tem uma nova, e a gente esquece do genocídio na Faixa de Gaza e da tragédia político-climática no Rio Grande do Sul (ou relembra quando a Cate Blanchett aparece caminhando no Sarandi) enquanto vê a notícia de que o ganhador do BBB, que supostamente tem uma equipe de 40 pessoas o assessorando, postou um story no Instagram com a seguinte frase: “Tomando um chá de camomila e assistindo um filme. 'O mal por se só se destrói'. Gostaram do filme?”. Será que ele estava assistindo ao filme do Silvio Santos?


Há alguns meses, ouvi falar, a empresa em que o Flávio trabalha sofreu um ataque mágico de uma ex-funcionária, praticante de bruxaria. Teve gente internada com pneumonia, um de cama com influenza, outro que bateu o carro, mais um que as costas travaram e até quem foi mordido por cachorro, e eu, esgotado ao ponto de querer bater minha cabeça contra a parede sem parar.


Não foram dias fáceis desde a última edição da newsletter, mas seguimos. Pode parecer estranho, mas é preciso imaginar Sísifo feliz. E, além de tudo, eu fiz uma festa de aniversário inspirada em Twin Peaks, o que mais eu posso querer?


Então, bem-vindos de volta à Estação Godot, mais um fascículo do seu folhetim irregular da sociedade pós-industrial, uma newsletter de esquerda, gaúcha e polêmica sobre literatura, cinema, música, arte, brasilidades, política, comportamente e cultura em geral, a maior representante da série C do jornalismo cultural de Bagé & Capão da Canoa.


Como não nossa publicação não é impressa, não serve pra embalar o peixe ou forrar o chão do banheiro em época de umidade, mas, enquanto passa os olhos nessas bobagens sem fim, você pode fingir que está lendo algo super interessante no ônibus, só pra evitar conversa com estranhos


É isso. Os recadinhos da paróquia continuam os mesmos, pessoal. Se você gosta desta newsletter, considere compartilhá-la com mais pessoas. Embora eu trabalhe com marketing, sou péssimo em autopromoção e não faço ideia de como divulgar isso aqui, então conto com o boca a boca de vocês.


Se achar que vale a pena, deixe um comentário no Substack. Se quiser, compartilhe alguma angústia oculta comigo através deste aplicativo duvidoso de perguntas anônimas ou pelo e-mail: lucasfreitasdarosa@gmail.com. Parece que agora tem alguma função interna do Substack para me enviar mensagens, fiquem à vontade para testar.



iii.


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iv.


Eu odeio o iFood. É um ódio desproporcional, admito, mas não me julgue — porque é um ódio puro, sem arestas, sem hesitação. Odeio o iFood como Deus ama a seus filhos: de forma irrestrita, infinita, incondicional. Odeio com o fervor de uma velha ranzinza reclamando da novela. Odeio sem remorso, sem explicação política, sem hashtag no Twitter. Não tem nada a ver com os entregadores, as multinacionais ou a precarização do trabalho. Também não é só o iFood, sejamos justos. Jogue na roda o UberEats, o Rappi, o Delivery Much. Tanto faz. Eu odeio. Odeio todos. Odeio essa forma que a nossa sociedade no capitalismo tardio do Sul Global decidiu que seria a adequada para comprar a sua janta. Odeio de um jeito visceral, como quem vê uma barata voadora cruzando o teto. Só pensar na ideia já me deixa em chamas. Eu odeio o iFood e odeio a ideia de um iFood. É um ódio que ultrapassa a coisa em si e chega no mundo das ideias. Só a concepção, a ideia da coisa, a maldita essência de Kant, já me faz mal. É como se eu não pudesse conviver com essa noção. Um ódio puro, metafísico, como se a própria existência dessa possibilidade fosse uma afronta ao meu frágil equilíbrio emocional. O negócio é o seguinte, eu odeio o iFood, porque toda a vez que me presto a tentar fazer um pedido, ele vem errado. Era pra ter vindo um hambúrguer de soja e vem um de feijão vermelho com beterraba. Era pra ter vindo xis clássico prensado e vem um com pão brioche. Era pra ter vindo um cachorro quente vegano e vem vegetariano. E sabe o que é mais absurdo? Quando eu constato que o pedido não chegou como eu queria, vou verificar e sou eu quem pediu errado. Sempre. Sou sempre eu que erra. Sempre. Tem ali o meu nome brilhando na telinha, com uma figurinha de hambúrguer piscando, quase como uma ironia perversa. “É isso mesmo que você pediu, trouxa”. Às vezes, chego a pensar que é algum tipo de ato falho freudiano, algo perto da pulsão de morte. É algum tipo de tortura, de masoquismo, não tenho dúvidas. O que eu estou fazendo com a minha vida, meu Deus? Vocês não fazem ideia como eu odeio o iFood, sempre precisos naquilo que eu pedi, mas que não queria ter pedido. Por isso, eu quero começar uma campanha pelo fim do iFood. Pelo fim dos botões sorrateiros, dos menus que dançam na tela do celular como ninjas sorrateiros. Quero voltar ao tempo glorioso de ligar para o restaurante, ouvir a voz morna do atendente, explicar que não vai ovo, nem queijo e o hambúrguer é de grão de bico. Céus, é tudo que eu queria. Que ao menos pudéssemos digitar no WhatsApp e enviar uma mensagem. Para toda vez que o pedido vier errado, termos a certeza que a culpa foi do estabelecimento, não nossa. Por isso, convido você a nos unirmos em nome dessa causa, da mesma forma como esse país já se mobilizou antes pela Diretas Já. Porque, no fundo, esse ódio pelo iFood não é só meu. É seu também. O ódio que vive em mim também vive em ti. Está em nós. Escondido, como a última batata frita esquecida no fundo do pacote. Vamos resgatá-lo.



v.


O título dessa newsletter devia ser “desculpa qualquer coisa”. Melhor: “desculpe qualquer coisa, Zé Mauro”. E, antes que você se pergunte quem é Zé Mauro, pense nele como um personagem ficcional, com um nome sonoro, como Quincas Borba ou Riobaldo, talvez um caseiro de um sítio de Nova Lima, cidade que fica a 22,8 km de Belo Horizonte, que me pegou fumando maconha quando foi avisar que o entregador do iFood havia chego.



Antes de encerrar, fique aí com uma música que não consegui parar de ouvir durante um bom tempo, e que já me fez até chorar. ■


* Texto publicado original em 23 de dezembro de 2024, na plataforma Substack.


 
 
 

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