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Cinco minicontos

Perigo! Ficção: somente pessoal autorizado.


A Cesta de Maçãs (1895), Paul Cézanne.
A Cesta de Maçãs (1895), Paul Cézanne.

Salve, pessoal! Agora não tem volta mesmo. Ficção, é isso mesmo? Parece que realmente o texto de uma newsletter é a porta de entrada para drogas mais pesadas. O próximo passo deve ser a poesia. E aí, já sabe: não tem mais volta.


Não tem muito o que dizer, o título é bem autoexplicativo: quatro minicontos. Ou se preferir, microcontos, nanocontos, short short story, flash fiction, rúcula, cumbuca, Adalberto, chame como quiser. São histórias curtinhas, sem espaço para jabs, só um direto ou cruzado.


Um dos textos eu apresentei no II Concurso de Escrita do Jornal Universitário do Pampa, cujo tema foi “Elza Soares na vida e na canção”.


Se você gostou, já sabe, é a ladainha de sempre: ajude esse pobre infeliz, compartilha, traz o pessoal pra cá e blá-blá-blá. Se achar que vale o investimento emocional, solta um comentário lá no Substack. Ah, se bater uma angústia, pode desabafar comigo neste aplicativo duvidoso de perguntas anônimas ou pelo e-mail: lucasfreitasdarosa@gmail.com


Manvantara


– Tânia, faz um favor, recolhe a roupa e tranca tudo.


Os pratinhos da coleção de vasos pra plantas de dona Márcia, esquecidos no pátio, já transbordavam a água. Magros feixes de luz, que atravessaram as frestas da envelhecida abertura de madeira, desenhavam uma pintura em claro-escuro entre as poças do chão.


Uma noite, no relógio dos cachorros, pode durar o equivalente cinco ou seis dias. Paçoca, com olhos e focinho de solidão congênita, permaneceu hirto diante do portal. ■


[Sem título]


Dormi bem, mas acordei com dor. ■


Se acaso você chegasse


Pode me alcançá o óleo?, Ana tava de boca cheia, mordia um naco de cenoura cozida e as mão manejavam uma colher entre as panela, Eu deixei ali ó, apontou ca cabeça, No secador. Era raro, mas o sorriso quieto de Carla às vez se bastava. Em geral recusava o silêncio, preferia falá tudo – era tipo literatura barata. No notebook Xênia França tocava baixinho e Carla deu três passo e já esquadrinhava a minúscula cozinha dois-por-dois. Ca tábua em cima da única boca desligada, Ana ia terminando de talhá meia cebola. O óleo de girassol tava à esquerda no balcão-pia, meio ladeado e em riba do escorredor de louça. Como o bico tinha ficado aberto, um pirex de sobremesa logo abaixo foi acidentalmente untado. Co óleo numa mão, Ana ia acendê o fogo da boca da frigideira. Noutra ponta do balcão-pia, as batata já ralada em talhos bem grosso se atopetavam num pote. Carla tava escorada na parede e bá, pensava nas noite que salvaram sua vida e nas duas tagarelando por horas e um assunto se acotovelando no outro e o pavor do silêncio que poderia revelá uma distância ou náusea entre ela e Ana. Meu, sabe o que eu andei ouvindo?, hesitante furou o tecido calado que encobria a situação, O Eduardo encontrou um apartamento na Santo Antônio. Acho que é o fim, né?. Os cogumelo já começavam a emurchecê e garrá na cebola e no alho, Ana deu uma gaitada disse É o fim de uma era! Defronte ao fogão, Ana podia vê vagamente a silhueta de Carla pelo reflexo embaciado que o azulejo fazia. A poucos palmos, Carla pensava que era bom assim, porque Ana não enxergaria a súbita e patética saída dum estado de apreensão por puxá um assunto (se ela fica braba?) e a queda na placidez do êxito. E era melhor ainda, porque conseguia abraçar ela por trás e assim fez. Na ponta dos pé, entrincheirada no ombro de Ana, ela viu a janta surgi nas panela. Quem é que vai sobrá nesse prédio?, Carla só queria que a conversa despropositada tivesse algum seguimento, que as boca não cerrassem, Olha, com certeza o Fábio, respondeu Ana. Os sorriso apalermado de cumplicidade serviam de pontuação pro diálogo, É, Ele tá esperando a gente se mudá pra mandá consertá o interfone. Caíram na risada e Ana torceu seu tronco, primeiro um pouco e depois todo corpo, e se abraçaram e se beijaram. Depois de vários dia da semana perguntando Que dia é hoje?, Carla sabia que era sexta feira, porque estavam juntas e não havia trabalho pra terminar. Quando ela chegou no apartamento, as begônias estavam morta, mas ela soube cuidá das mudinha recém-comprada e estava bonito agora. Carla disse Eu te amo, mas, quando abriu finalmente os olho, a porta do apartamento estava sendo esmurrada, Abre, porra! Sei que tu táí, Carla! Carla respirou bem fundo e Ana esticou o corpo pra próximo da entrada. Carla disse, Deixa que eu abro. ■


Milonga


– Que é que faço com esse violão do pai? Fui pegar, e as cordas tão enferrujadas. ■

Romã


Isso faz coisa três ou quatro anos. Eu acordei com uma dor em teia, larga. Uma dor que me arrancou a simetria e o compasso do caminhar. Estou tão longe de quando mana Iara me levava ao conservatório – plié, tendu... Já troquei de colchão, mais duro, mais mole, mais duro de novo. Nilton nunca reclamou, nunca disse nada. Mesmo quando pedi para trocarmos de lado e ele ficou longe da porta. Ele levanta muito para mijar. Numa dessas, tropeçou num banco que usamos para chegar no alto do roupeiro e se estatelou no chão. Quebrou o dente que segurava a ponte. Demorou a querer ir ao dentista.


Ontem ele estava acocorado no canto da sala, mãos trêmulas examinando a caixa com potes e bisnagas gastos. Na tela arribada no cavalete, uma romã de dias aguardava pelas cores. “Está tudo bem?”. Ele volveu parte do corpo em minha direção e seus olhos me cravejaram. Como eu pude ser tão infeliz e perguntar aquilo? ■

* Texto publicado original em 23 de janeiro de 2024, na plataforma Substack.

 
 
 

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