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Dentro do som do silêncio (parte um)

Quando estoura uma greve


Este é o primeiro fascículo da minha newsletter, a Estação Godot. Para ser mais preciso, é a primeira parte do primeiro fascículo, já que, ao que tudo indica, minha tendência à prolixidade me levou a ultrapassar o limite da plataforma. Por isso, precisei dividir o texto em duas partes.


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Ah, “Estação Godot” é uma piada (óbvia) com a peça de Beckett. Não vou me estender explicando isso agora, talvez amanhã.

Por enquanto, é isso – eu acho. Enfim, boa leitura.

Arte de capa: Arthur Eloy (@____imag3tico)
Arte de capa: Arthur Eloy (@____imag3tico)

“Por muito tempo me calei; estive em silêncio, e me contive; mas agora darei gritos como a que está de parto, e a todos os assolarei e juntamente devorarei”. (Isaías 42:14)

i.


O apito estridente corta o ar denso e dá passagem para o som dos cascos dos cavalos. A marcha dos equinos, então, ressoa naquelas vielas pétreas como uma orquestra de tambores retumbantes. No meio do burburinho, uma mãe de olhos chorosos e voz gaguejante persegue seu filho, que caminha entre as fileiras militares. Sua súplica é ignorada; e ela é golpeada por um cossaco, como um aviso para todos os homens e mulheres que testemunham a cena. Desencadeia-se um tumulto, a multidão resiste, até que a força militar impõe sua repressão sem dó. Levados a um ermo descampado, os pobres e desgraçados são fuzilados.


É mais ou menos assim que termina o filme «A Greve» (Стачка), dirigido de Serguei Eisenstein. E é nesse desfecho que o cineasta exibe toda sua engenhosidade, ao introduzir o que seria uma novidade para um artefato cultural que, por si só, já era algo novo. Afinal, as primeiras exibições públicas do cinematógrafo dos irmãos Auguste e Louis Lumière haviam acontecido apenas trinta anos antes, em 1895, na capital francesa.


Se considerássemos somente essa ação final, executada com extrema destreza e modernidade, já teríamos matéria-prima suficiente para cativar e surpreender qualquer espectador, mesmo nos dias de hoje. O mise-en-scène presente nessa sequência teve um impacto profundo na história do cinema — e é até hoje impressionante. A sacada de Eisenstein, no entanto, foi entrelaçar toda a intensidade do clímax do filme com imagens que retratam o abate de gado em um matadouro.


Quando encerra, com as imagens da matança do boi e da multidão de trabalhadores vistas uma após a outra, surge um letreiro final, que incita o espectador a não deixar escapar da memória as “cicatrizes e o sangue do corpo proletário”. As linhas seguintes do texto em tela aludem diretamente a uma série de conflitos que forjaram a história da Rússia – e dentre eles, talvez o mais notório seja o infame Massacre do Lena.


No outono de 1913, o revolucionário russo conhecido como Vladimir Lênin redigiu um artigo intitulado «Greves dos Metalúrgicos em 1912» para o periódico Metallist. O texto, relativamente extenso, teve sua publicação dividida em três fascículos, os números 7, 8 e 10 da publicação, editados em 24 de agosto, 18 de setembro e 25 de outubro, respectivamente.


Embora já utilizasse o pseudônimo Lênin (especula-se que seja uma referência ao Rio Lena, situado na região da Sibéria) desde 1901, alcunha que ganharia proporções as quais talvez ninguém pudesse antever, ele firma esse ensaio sob o nome de V. Ilyin. Ao longo de sua vida, aliás, Vladimir Ulianov (seu nome de batismo) usou mais de 150 nomes fictícios – alguns com os quais assinou muitos textos politicamente engajados, o que permitiu manter-se seguro, na clandestinidade.


A exemplo disso, a N. Lenin é creditada a autoria do famoso panfleto «Que fazer?» (Что дѣлать?), de 1902. Aliás, embora o “N” provavelmente não significasse nada, com o tempo, incorreu-se em um erro popular ao associá-lo a “Nikolai”.


V. Ilyin, no entanto, de propósitos mais modestos, no ensaio de 1913, não se propõe a elaborar uma grandiosa tese; ao invés disso, adota uma abordagem mais contida – o que, quem sabe, poderíamos entender como uma análise de conjuntura.


«Greves dos Metalúrgicos em 1912» pode ser interpretado como uma reação da figura que, com o tempo, se tornaria conhecida exclusivamente como Lênin, a um relatório emitido pela Associação de Donos de Fábricas na Área Industrial de Moscou.


Segundo John Reed, autor de «Os Dez Dias que Abalaram o Mundo» (1919), obra que documenta a Revolução Russa de 1917, Lênin tinha “o dom poderoso de expor as ideias mais complexas com as palavras mais simples, e de fazer uma análise profunda de uma situação concreta”, característica que possivelmente transparece nesse ensaio. Logo na introdução, o autor sugere que talvez a parte mais interessante do estudo divulgado pela classe patronal seja aquela que destaca os números do movimento grevista em diversas regiões da Rússia.


Desde o raiar de 1897, Lênin, absorvido pelo frenesi do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), trabalhava para que suas pegadas se perdessem nas estradas do exílio forçado. Ele vagou de cidade em cidade por toda a Europa, costurando laços com uma miríade de grupos políticos que se entrelaçavam no complexo panorama da época. Entre as muitas paisagens urbanas que marcaram sua rota, em meio a diferentes disfarces, Londres acabou por se mostrar como um bom refúgio. Sob o manto cinzento da cidade, Lênin viu seus dias se desdobrarem em um ritmo de debates acalorados, reuniões clandestinas e encontros fervorosos com camaradas.


Naqueles anos de formação, o tempo parecia se dobrar para Lênin, oferecendo-lhe uma rara oportunidade de amadurecer e nutrir as ideias que fervilhavam dentro dele. A despeito do exílio, que o confinava a terras estrangeiras, ele permanecia com olhos atentos às marés de mobilizações e insurgências que varriam a Rússia. Desde o começo do século, a vasta terra de estepes infinitas estava mergulhada em uma agitação social e política que não conhecia trégua.


Apenas oito anos antes da publicação deste ensaio, os eventos da Revolução de 1905 se desenrolavam, deixando uma marca indelével na memória coletiva do povo russo. Aquele levante, sufocado brutalmente pela ferocidade militar, era uma sombra ainda pairando, enquanto promessas vazias serviam como lenitivo aos clamores por uma transformação radical da sociedade.


Em seu texto, Lênin examina atentamente as estimativas: 96.750 grevistas em 1911 e 211.595 em 1912, considerando apenas as greves econômicas. As chamadas greves políticas, segundo os dados revelam, afetaram cerca de 850.000 trabalhadores em 1912, 8.000 em 1911 e 4.000 em 1910.


Desde 1905, as estatísticas oficiais sobre greves, compiladas pelo Ministério do Comércio e da Indústria, faziam a distinção entre as greves de natureza econômica e as que se enquadram como políticas. As últimas, voltadas à alteração de leis e políticas do governo, reverberariam uma insatisfação mais profunda com as estruturas estabelecidas.


As greves políticas, antes protagonistas daquele contexto, agora cediam espaço ao clamor por melhorias econômicas e condições de trabalho. Lênin sugere que a classe operária, especialmente os metalúrgicos, estava percebendo a urgência das melhorias materiais imediatas, alterando o foco para as greves de caráter econômico. Dessa forma, a repressão governamental, aliada às mudanças no cenário político, impactaram a capacidade dos trabalhadores de conduzirem greves políticas eficazes.


Textos anteriores, produzidos um ano antes, em meio ao fervor das greves, refletem a sua posição — e a do grupo a que se filiava. O foco de Lênin era direcionado à forja de uma república, à edificação de um partido — então clandestino, mas destinado a conduzir uma nova sociedade. Em sua compreensão, era somente dessa forma que a revolução poderia ser dirigida e, por conseguinte, era o meio inescapável de livrar as massas do jugo czarista.


O artigo de Lênin para o Metallist destaca o ano de 1912 como uma promessa no panorama grevista russo. Nas informações que ele observa, os números dos grevistas eram segmentados: metalúrgicos (78.195), têxteis (89.540) e outros setores (43.860). Além disso, o estudo revelou que a duração média das greves se ampliou de 4,8 dias em 1895-1904 para 13,4 dias em 1912.


O peso desses números (e, obviamente, toda sua construção teórica) o levaram a antecipar uma nova onda de agitação revolucionária. Em sua análise, ele considerou alguns elementos condicionantes para essa realidade: a relação de crescimento do proletariado, a maior concentração da classe trabalhadora nas cidades e o aumento da consciência política entre os trabalhadores. A combinação de greves políticas e econômicas emergiria, portanto, na visão de Lenin, como uma estratégia para os períodos seguintes.


Em «Que fazer?», Lênin propôs a tese de que a consciência de classe dos trabalhadores não poderia emergir naturalmente a partir de conflitos econômicos com os empregadores ou por meio de ações espontâneas, como greves e manifestações. Em lugar disso, ele defendia que os revolucionários tinham a responsabilidade de estabelecer um partido político que disseminasse os princípios marxistas e convencesse os trabalhadores a se unirem à causa.


Embora o ensaio para a Metallist não entre em detalhes sobre esses aspectos, Lênin sugere a existência de obstáculos e perseguições enfrentadas pelos trabalhadores. Por exemplo, menciona que a compilação de estatísticas de greves pelos próprios trabalhadores é difícil devido à perseguição às associações de trabalhadores e à imprensa operária na Rússia. Além disso, o texto destaca que as estatísticas oficiais do governo são pobres, fragmentadas e muitas vezes não confiáveis.


Serguei Eisenstein em «O Diário de Glumov» (1923).
Serguei Eisenstein em «O Diário de Glumov» (1923).

Foi então que tudo que se desenhava como possibilidade se consumou. Entre as páginas do ensaio de Lênin e o ano de 1925, para onde nos transportamos agora, desenrolou-se uma trama extraordinária de acontecimentos na Rússia: a Revolução de 1917, a queda da monarquia, a ascensão dos sovietes, a subsequente guerra civil e a emergência de um novo sistema político e social baseado nos ideais socialistas.


E, enquanto a realidade russa se transformava com uma velocidade assombrosa, Serguei Eisenstein embarcava na direção de seu primeiro longa-metragem, «A Greve».


Em um contexto de efervescência política rara, o cinema despontava como uma forma de entretenimento muito popular e, talvez por isso, também uma arma de propaganda extremamente eficaz. De um lado os cineastas soviéticos se embrenhavam na forja de uma estética artística que ressoasse com a classe trabalhadora (e que, de certa forma, esculpisse uma subjetividade específica), do outro os anos anteriores haviam legado ao mundo uma paleta variada – o cinema industrial dinamarquês, o impressionismo francês (avant-garde), o expressionismo alemão, etc.


Do outro lado do oceano, no novo continente, em 1915, estreou o filme americano «O Nascimento de uma Nação» (The Birth of a Nation). O primeiro longa-metragem de D. W. Griffith, ao retratar a Ku Klux Klan como uma força heroica na fundação dos Estados Unidos, promovia abertamente um ideário de supremacia branca – e, portanto, estava imerso e também era responsável por criar uma mentalidade nacional.


Em 1923, Eisenstein realizou sua primeira incursão no cinema. Ele dirigiu um curta-metragem de 5 minutos intitulado «O Diário de Glumov» (Дневник Глумова). A produção – muito mais modesta do que o que ele viria a fazer a seguir – foi concebida como adaptação e também elemento cênico da peça «Há estupidez o bastante para cada homem sábio» (На всякого мудреца довольно простоты), escrita em 1868 por Alexander Ostrovsky.


Antes disso, Eisenstein havia trabalhado basicamente no teatro experimental, como designer e diretor no Teatro Proletkult. Enquanto Boris Mikhin, líder do Goskino URSS, o Comitê Estatal de Cinematografia da União Soviética, ansiava pela contribuição de Eisenstein no cinema, o Proletkult tentava mantê-lo em suas fileiras. Diante do dilema, eles negociaram e decidiram iniciar uma colaboração conjunta.



«O Diário de Glumov» foi rodado em abril de 1923, poucos dias antes da estreia da peça do Proletkult, quando teve sua primeira exibição. Dziga Vertov, já reconhecido à época como um importante diretor de cinema, atuou como consultor no projeto. Vertov acreditava no poder do cinema em revelar a realidade de forma crua e autêntica. Seu trabalho mais famoso viria a ser lançado anos depois: o parte documentário, parte ficção «Um Homem com uma Câmera» (Человек с киноаппаратом), de 1929.


O curta-metragem de Eisenstein também foi incluído no número 16 da série de cinejornais Kino-Pravda (Кино-Правда, Filme-Verdade) de Dziga Vertov, lançado em 21 de maio de 1923, com o título «Sorrisos de Primavera do Proletkult» (Весенние улыбки Пролеткульта).


A partir desse ponto, Eisenstein lançou-se a um empreendimento ousado – uma série de filmes que comporia a epopeia intitulada «Rumo à Ditadura do Proletariado» (От подполья к диктатуре). Tal ciclo pretendia traçar um panorama histórico, servindo também alicerce para, em seus termos, a formação da consciência de classe dos trabalhadores russos. Os títulos «Genebra-Rússia» (Женева — Россия), «Subterrâneo» (Подполье), «Primeiro de Maio de 1905» (1 мая), «A Greve» (Стачка), «Motins» (бунты), «Fugas na Prisão» («Тюрьмы, побеги») e «Outubro» (Октябрь) foram planejados para compor o projeto.


Esse ambicioso intento, como frequentemente acontece com os sonhos mais grandiosos, permaneceu incompleto. Mesmo assim, ecos do conceito original de Eisenstein reverberaram e foram incorporados em filmes posteriores: «A Greve» (1925), «O Encouraçado Potemkin» (Бронено́сец „Потёмкин“, 1925) e «Outubro: Dez Dias que Abalaram o Mundo» (Десять дней, которые потрясли мир, 1928).


Antes disso, voltemos: quando seu caminho como diretor de cinema começava a se desenhar, ainda em 1923, Serguei Eisenstein deu um passo crucial em sua trajetória ao publicar um artigo intitulado «A Montagem das Atrações» (Монтаж аттракционов) na revista de arte LEF (Леф). Com isso, ele não apenas se apresentava ao público como cineasta, mas também como um teórico cuja influência moldaria de forma singular o panorama cinematográfico.


Em seu texto, ele traçou os fundamentos de sua abordagem à edição cinematográfica – a chamada montagem dialética. Inspirado pela escola Kuleshov de cinema, que preconizava a criação de conflitos, colisões e choques por meio da montagem, Eisenstein via nessa técnica muito mais do que uma simples manipulação mecânica. Para ele, era uma poderosa ferramenta capaz de evocar respostas emocionais profundas nos espectadores.


Esses conceitos encontraram uma aplicação, como eu já disse, engenhosa em «A Greve». Ali, Eisenstein habilmente alternava na montagem entre, por exemplo, retratos de cidadãos com rostos sofridos no confronto com as forças militares e cenas de acionistas rechonchudos e gananciosos, erguendo taças e exalando baforadas de charutos.


Essas imagens contrastantes, costuradas lado a lado, comunicavam de maneira impactante a disparidade entre a realidade dos trabalhadores oprimidos e a alienação da elite burguesa.


«A Greve» é possivelmente um dos meus filmes preferidos do cinema mudo; e certamente a obra de Eisenstein que mais me causou impacto, superando até mesmo «O Encouraçado Potemkin». Uma sequência que particularmente me arrebata ocorre ainda nos primeiros trinta minutos do filme, quando os trabalhadores se agrupam em pequenos grupos para organizar suas exigências aos patrões. Essa imagem é intercalada com outra cena que gradualmente emerge de um fade-in: os policiais russos polindo cuidadosamente suas botas em seu quartel-general.


O filme de Eisenstein narra os tumultuosos eventos em torno de uma greve fracassada no início do século XX, na Rússia sob o regime czarista. À medida que a agitação se intensificava em uma região fabril, os trabalhadores se unem para lutar por melhores condições, enfrentando espiões e pressões externas. O enredo captura, portanto, desde o entusiasmo inicial e avança a crescente fome e sofrimento causados pela duração prolongada da greve.


Diferentemente de «O Encouraçado Potemkin», que se concentra em uma representação histórica mais direta, «A Greve» é uma composição ficcional inspirada por diversos episódios reais. Suspeita-se que Eisenstein tenha misturado elementos de diferentes contextos de greves e insurgências populares — como, por exemplo, o Massacre do Lena, que ocorreu em 4 de junho de 1912.


Nesse episódio, o Exército Imperial Russo se mobilizou para conter uma greve de trabalhadores das minas de ouro de Bodajbo, um centro de mineração localizado nas margens do Rio Lena, na Sibéria. Os soldados dispararam contra a multidão desarmada, deixando centenas de manifestantes mortos.


Como no fim de «Germinal», publicado pela primeira vez em 1885, os ecos das mortes dos operários constituem a teia da esperança, que deve ressoar no futuro de forma persistente. Nas páginas do livro de Émile Zola, a mão da repressão militar sufoca uma greve de mineiros na cidade francesa de Marchienne. A esperança arrefece e a luta parece perdida.



No desfecho, Étienne, o protagonista, emerge do subterrâneo para a superfície e contempla a mina de Voreux: “sob seus pés, continuavam as batidas cavas, obstinadas, das picaretas. Todos os companheiros estavam lá no fundo; ouvia-os seguindo-o a cada passo”.


É um pouco como, em Walter Benjamin, quando o indivíduo mergulha na memória coletiva, onde as ressonâncias do passado reverberam e mantêm-se vivas. Essa nova continuidade, nos seus próprios termos, é que pode desencadear uma ruptura profunda. “Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra”.


ii.


É difícil acreditar que Ruy Guerra e Nelson Xavier não tivessem o filme de Eisenstein em mente quando escolheram abrir «A Queda», de 1978, com uma sequência em um abatedouro.


Na verdade, os primeiros segundos do filme registram a imagem de um prédio em implosão. O plano é fechado na fronte do edifício e, à medida que o desabamento começa, o enquadramento vai abrindo e a fumaça marrom preenche boa parte da tela. A edição corta, então, para um cenário de um lixão, onde trabalhadores (sem dúvida, informais), principalmente mulheres e crianças, quase todas (ou todas) negras, ocupam-se da lida com pás, enxadas ou as próprias mãos. Até o momento, parece que estamos diante de uma fita documental. O som ambiente está presente – ouvimos ruídos de caminhões, murmúrios e uma infinidade de outros sons em uma mistura praticamente ininteligível. É possível ouvir um comentário (de uma criança, eu acho): “esse é o futuro do Brasil”.


Corta. Agora, o filme nos leva a testemunhar o abate de um boi; o filme meticulosamente exibe, em enquadramentos bem fechados, tudo que acontece no ambiente – de um trabalhador impassível fumando até outros cumprindo tarefas como golpear a cabeça do animal e esfolar sua pele. A sequência é marcada por uma visceralidade assombrosa; há literalmente sangue jorrando em todas as direções.


No entanto, a aura documental é interrompida abruptamente quando um dos trabalhadores do matadouro oferece copos de sangue aos acionistas de uma construtora e a um deputado que estão presentes no local para uma reunião.


«A Queda» emprega um recurso intrigante a partir desse momento, passando a retratar os executivos apenas por meio de imagens estáticas (e muito granuladas), com seus diálogos dublados por vozes conhecidas do público, conferindo uma considerável artificialidade à cena – e evidenciando a desconexão entre a elite com a cena ao seu redor. Dá a impressão de ouvir a voz de Jorgeh Ramos emprestando sua entonação a um dos executivos. “Deus o ouça”, ele diz de forma quase irônica ao tomar ciência da garantida vitória na licitação.


O contraste entre o registro de estilo documental, com a câmera manuseada na mão, o ambiente sonoro permeando os diálogos, e a perspectiva do patronato, encapsulada em fotografias que poderiam ter saído de uma matéria apologética em uma revista, como se estivessem um mundo parte, estabelece a atmosfera do filme.


Então, os créditos iniciais surgem ao som de «E Daí?», de Milton Nascimento.


Cenas de «A Queda” (1978), de Ruy Guerra e Nelson Xavier, e «A Greve” (1925), de Serguei Eisenstein.
Cenas de «A Queda” (1978), de Ruy Guerra e Nelson Xavier, e «A Greve” (1925), de Serguei Eisenstein.

É verdade: a introdução do filme tece também uma conexão sutil com seu predecessor. É como uma continuação de «Os Fuzis», também dirigido por Ruy Guerra, que «A Queda» se apresentou ao público.


Lançado um ano antes do golpe militar, em 1963, «Os Fuzis» tem seu enredo ambientado em uma pequena cidade do interior nordestino. Um grupo de soldados é destacado à região para manter a ordem e impedir que a população faminta saqueie o armazém de mantimentos pertencente ao grande produtor da região.


Diante desse cenário, o povo, em meio à fome prevalecente, busca consolo na esperança representada por um líder religioso, interpretado por Maurício Loyola, devoto de um boi. No clímax, porém, a crescente insanidade da multidão atinge seu ápice com o sacrifício do animal, que é consumido até as tripas. Essa carnificina representa uma ruptura completa com aquela antiga forma de vida e marca o desfecho do filme.


Quinze anos depois, o cenário se desloca para o ambiente urbano e industrial do Brasil, já sob a ditadura civil-militar. «A Queda» resgata a história dos personagens de «Os Fuzis»: Mário e José, personagens de Nelson Xavier e Hugo Carvana, deixam para trás suas fardas e, hoje, encontram-se inseridos no contexto crescente da indústria de construção civil. Pedro, interpretado por Paulo César Peréio, também é um personagem que vem de «Os Fuzis». Ao contrário dos outros dois personagens, ele permaneceu no âmbito militar. Em sua única aparição, ilustrativamente, ele veste farda.



Se o tom realista já era perceptível em «Os Fuzis» – é emblemática a observação de Roberto Schwarz, como se “alternassem duas fitas incompatíveis: um documentário da seca e da pobreza, e um filme de enredo” –, em «A Queda» essa proposta estética é levada à radicalidade.


O filme mescla atores e não-atores em inúmeras cenas, coleta, inclusive, depoimentos de trabalhadores da construção civil, entrelaçando esses elementos à trama de forma orgânica. Há uma cena em que os personagens de Nelson Xavier e Peréio caminham por uma rua em meio a uma multidão, dialogando enquanto as pessoas passam e direcionam olhares à câmera – e tudo é incorporado à película.


É um filme que encara de frente a ditadura civil-militar, expondo sua face modernizadora, que sempre mirou na ascensão de um capitalismo desgovernado, que assegurou que o processo de acumulação operasse, enquanto simultaneamente procurava instaurar uma forma de democracia alinhada com essa visão. Marighella chamou isso de “democracia racionada”, expressão posteriormente resgatada por Lincoln Secco em um artigo para o Le Monde Diplomatique. Dessa forma, é compreensível que as questões do mundo rural, que outrora foram foco do movimento do Cinema Novo e da “estética da fome”, agora estivessem no passado dos personagens.


No 1º de maio do ano de 1978, o presidente Ernesto Geisel dirigiu-se a uma multidão incauta em São Paulo com algumas palavras improvisadas. Pode-se presumir, aliás, que havia um certo humor (perverso) nas palavras do general, ainda que a jocosidade não fosse um traço conhecido de sua personalidade – a crueldade sim. Na ocasião, ele falou sobre uma sociedade onde capital e trabalho poderiam coexistir harmoniosamente, “em que o capital não gera apenas lucros”. Ele sugeriu que esse regime era o que poderia ser denominado de “neocapitalismo”. Segundo ele, esse capital desempenharia um papel junto ao trabalhador, que daria “a sua contribuição positiva para que essa Nação seja grande e feliz como todos desejamos”.


Foi, aliás, Geisel quem, um mês depois de decretar o chamado Pacote de Abril e fechar o Congresso Nacional, disse a jornalistas franceses que o Brasil vivia uma democracia relativa. “Todas as coisas no mundo, exceto Deus, são relativas”, disse ele àquela altura.


Com dez minutos de tela já transcorridos, os créditos iniciais se encerram e a narrativa irrompe com a queda de um operário de um andaime no alto de um esqueleto estrutural de um prédio. No meio do lamaçal formado pela intensa chuva no canteiro de obras, os trabalhadores se apressam em socorrer o colega caído. A cena é caótica e agitada, apenas mais tarde fica claro que se trata de um acidente, quando é revelado o rosto ensanguentado do operário. O personagem é José, interpretado por Hugo Carvana.


Nesse momento, entra a primeira inserção em preto e branco de «Os Fuzis», identificando o acidentado de «A Queda» como o personagem homônimo do filme de 1963. A narrativa retorna à cena do acidentado, agora sendo transportado em uma maca para um hospital.


José morre, e é esse acontecimento que acaba por transformar Mário, personagem vivido por Nelson Xavier. O evento é o gatilho para que sua frustração profunda finalmente ecloda. Ele, consciente das circunstâncias, percebe sua própria impotência frente a toda situação. Desolado, ele protagoniza um dos monólogos mais bonitos do cinema brasileiro: “Ele morreu por nada. Vai continuar tudo igual. Como se eu fosse morrer amanhã, e tudo continuasse igual. Como se eu nunca tivesse existido. Uma pessoa não pode morrer assim. Não é justo”.


Ao longo do filme, Mário não consegue mobilizar nenhum de seus colegas para qualquer mudança estrutural nas dinâmicas do ambiente de trabalho. Sua tentativa de auxiliar a viúva da vítima ao ganho de uma indenização devida também fracassa, uma vez que a empresa exerce forte pressão e busca impor a um acordo.


Mário leva sua jornada solitária e desesperada até as últimas instâncias. Ele abre mão de sua relação com o sogro, Salatiel, interpretado por Lima Duarte, que também é empreiteiro e seu chefe. Com isso, ele sacrifica seu emprego e põe em xeque até mesmo seu casamento com Laura, personagem de Isabel Ribeiro, visto que a convivência com Salatiel – um homem que sublimou qualquer senso de justiça em prol do desejo de ascensão social – chegara ao limite.


Sozinho, Mário acaba vagando em direção à periferia mais ou menos como o início da trama «Germinal», de Zola, quando Etienne Lantier, operador de máquinas, que, “na sua existência de vagabundo”, procurando emprego, observa a mina de Veroux e observa que ela “dava-lhe a impressão de um animal voraz e feroz, agachado à espreita para devorar o mundo”.


Contudo, no filme de Ruy Guerra e Nelson Xavier, a criatura à espreita, pronta para engolir o mundo, não era senão a própria cidade, que expande e carrega em suas entranhas uma natureza intrinsecamente destrutiva. Os edifícios, qual figuras monstruosas, erguem-se em direção aos céus e mantêm viva uma força que fagocita tudo ao seu redor.


«A Queda» foi filmado em 1976 e fez sua estreia em 26 de abril de 1978. O Cine Pax, situado em Ipanema, de frente para a Praça Nossa Senhora da Paz, no Rio de Janeiro, sediou o evento. Naquela noite, os valores da bilheteria foram revertidos em benefício dos dubladores brasileiros, que estavam em greve. ■

* Texto publicado original em 22 de agosto de 2023, na plataforma Substack.

 
 
 

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