Mas tá tudo bem, mãe; é a vida, e a vida só #2
- Lucas Rosa
- 6 de nov.
- 5 min de leitura
Paulistas e paulistanos, arquivos e um encontro com o cara que não é (só) o Quico

São Paulo, 4 de setembro de 2023
Mãe,
Eu tô escrevendo aqui e lembrando que em poucos dias vai ser o aniversário do Fábio. Tomara que ele apronte alguma coisa bacana e convide você e a vó. É bom sair, respirar um ar diferente, ver gente por aí. E tem as crianças, né? Quando foi a última vez que vocês viram elas?
Bom, tenho que me desculpar, mas não tem jeito. Tô escrevendo e falando “você”. Não que não vão me entender se eu falar “tu”, mas vai soar um pouco esquisito. Aqui ninguém fala “tu”, “cacetinho” e “bergamota”; é “você”, “pão francês” e “tangerina”. Ao invés de “tchê”, a gente ouve muito “meu”, sabe?
Ah, não tenho certeza se falam mais “aipim” ou “mandioca”, vou dar uma conferida no cardápio de porções do próximo bar que eu for.
Nesses dias, mãe, esbarrei em muita gente famosa na rua. Na Fradique Coutinho, a rua onde a gente se hospedou, avistei de longe a Nataly Néri e o Jonas Maria; no Shuk, um restaurante árabe, dei de cara com o Chico Barney; e, zanzando pela Liberdade, um bairro japonês, enxerguei o Levi Kaique Ferreira e a Amélia do Carmo.
Ah, sim. Eu imagino que provavelmente você não faz a menor ideia de quem sejam. Mas são pessoas importantes, eu acho. É gente do Twitter, do Instagram e do TikTok. Falam coisas importantes e, às vezes, engraçadas, fazem receitas ou ensinam coisas que o pessoal gosta de aprender.
O Chico Barney é um jornalista, escreve muito sobre televisão, Big Brother, essas coisas. Agora ele tem um canal no YouTube sobre quadrinhos, às vezes eu assisto. A Amélia faz receitas veganas, já devo ter te mandado algum vídeo dela.
Enfim, tenho me embrenhado nos arquivos por aqui. Fui na Fundação Perseu Abramo, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e na biblioteca da Cinemateca Brasileira. E, poxa, foi muito bom.
Ainda não descobri se é paulista ou paulistano, mas sei que o pessoal costuma dizer que essa gente aqui é muito sisuda, ensimesmada. E, acredite ou não, a minha experiência tem sido o oposto disso.
Por onde andei, a recepção foi da melhor qualidade. Especialmente nos arquivos, onde o pessoal mostrou muita paciência pra me orientar nas pesquisas que eu precisava fazer.
No Arquivo do Estado, por exemplo, tive de lidar com a papelada do DOPS, da repressão. E é um negócio tão confuso a maneira como os militares organizaram a documentação que, para um leigo, é praticamente impossível achar as coisas. Sorte que o responsável pelo setor foi muito gentil, me deu todas as orientações, explicou todo processo.
Nesse meio tempo, eu também aproveitei para tomar uma cerveja e conversar com um dublador chamado Nelson Machado.
Mãe, ele é um sujeito fantástico. É um cara muito bacana, com uma bagagem imensa, mas é gente como a gente, senta no boteco e bate papo. Ele atua, escreve, canta, essa coisa toda. E como atua, mãe! Lembra de um filme com o Michael Douglas chamado “O Solteirão”? A voz que você ouviu ali era do Nelson.
Eu acho que ele não dubla muito esse ator, sei lá porque cargas d’água o escalaram. Inclusive, se bem me lembro, o filme nem era grandes coisa. Só me recordo de ver você assistindo na sala e, quando ouvi a voz dele, a forma como dava vida à cena, ao ator, a tudo, sei que fiquei embasbacado e acabei grudado assistindo o resto do filme contigo.
Enfim, o Nelson é esse cara (ou, melhor, essa voz). Talvez, a gente esteja mais acostumado a ouvir a voz dele em outros atores, como o Robin Williams e o Roberto Benigni. Ele fez o Al Pacino em alguns filmes também, lembro de tê-lo reconhecido em “Fogo contra Fogo” — acho que esse você não viu. Mas ele me contou que fez “Simone”. Lembra desse? Passava muito no SBT, o cara criava uma atriz no computador, algo assim. Me deu vontade de rever.
E é muito interessante conversar com um sujeito como ele, porque ele é um grande ator, entende?
Veja bem, o que eu quero dizer é que um bom ator parece ser aquele que consegue contar uma história com aquilo está dizendo. Não é que ele necessariamente precisa estar contando uma história, mas tudo o que ele diz precisa estar impregnado de emoção, de modo a nos fazer enxergar a história.
Por isso, quando conversávamos, mesmo que o assunto fosse trivial, cada pausa, cada frase, parecia carregada de significado, como se ele tivesse uma consciência profunda das palavras. É claro que tem muito gente assim no mundo, mas não deixa de ser impressionante.
E ele foi incrivelmente generoso em compartilhar suas memórias e se abrir comigo. Aliás, ele comentou uma coisa curiosa, falou de um filme do Robin Williams que ele dublou e que se chama “Hook: A Volta do Capitão Gancho”.
Há uma cena, ele me disse, em que o personagem do Robin Williams, que é, na verdade, o Peter Pan, diz: “esse é o meu Jack”. Nesse momento, o personagem reconhece seu filho, e isso se torna um ponto de virada na história. Para Nelson, essa cena era fundamental, e ele conduziu sua dublagem de maneira a captar essa nuança.
Foi então que eu, na minha arrogância besta, comentei que a atuação parecia ser algo complexo, que talvez precisasse de conhecimento sobre Peter Pan, literatura universal, cânone, qualquer bobagem do tipo. Ele respondeu: “talvez, só precise ser pai”. E acho que ele estava certo.
No fim das contas, acho que gostaria de ter tirado uma foto com ele, mas fiquei com vergonha de pagar de fã.
Quando nos despedimos, eu disse que estava gostando da cidade e achava São Paulo um lugar interessante. Ele respondeu, rindo: “essa é uma afirmação interessante”.
E quase esqueci de contar. O Nelson é o dublador do Quico também, mas disso a gente quase nem falou. Lembrei agora: o que achei engraçado é que, quando ele me viu pela primeira vez, comentou: “Rapaz, você é tão simpático, mas sua foto do WhatsApp… olha, ela amedronta”. Eu até pensei em mudar, mas Marina disse que eu deveria deixar assim.
Sabe, mãe, tão dizendo agora, com essa coisa de inteligência artificial, que os dubladores vão ser substituídos. O computador vai recriar a voz dos atores estrangeiros em outros idiomas. Sinceramente, eu não quero ouvir uma voz de computador no Robin Williams, no Roberto Benigni ou no Carlos Villagrán. Eu quero ouvir o Nelson!
E é isso. Continuo aqui, trabalhando muito.
Pros que perguntarem por mim, minta que estou com saudade.
Um beijo, mãe.
Lucas. ■
* Texto publicado original em 26 de outubro de 2023, na plataforma Substack.




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