top of page
Buscar

Mas tá tudo bem, mãe; é a vida, e a vida só #4

Horário comercial e mais atualizações do Rio de Janeiro


Em oito minutos, leia o fascículo de hoje da Estação Godot, uma newsletter de esquerda, gaúcha e polêmica sobre literatura, cinema, música, política e cultura em geral.


Quando você acha que a paz finalmente chegou, lá vem mais um e-mail na sua caixa de entrada. No meio daquela enxurrada de e-mails marketing do Submarino, que você não faz ideia do porquê está recebendo, já que a última compra que fez lá foi em 2015, você passa os olhos e enxerga um nome familiar. “Estação Godot, que isso mesmo?”


ree

Eu sei que a frequência e a constância não tem sido atributos pelos quais eu tenho sido reconhecido por aqui. O que eu posso dizer? Apesar do nome, da brincadeira, foi um pouco involuntário a maneira como transformei isso aqui no palco da peça do Beckett.


Esse final de ano está sendo um verdadeiro caos por aqui. Desde o final de novembro, acho que enfrentei uns três episódios de burnout (lembrei agora que a dublagem de Twin Peaks traduz "burnout" como "estafa" quando descreve certo episódio na vida pregressa do agente Dale Cooper). Na verdade, o termo mais técnico para o que experimentei seria: um treco.


Tudo começou em um sábado com uma exaustão profunda depois de uma caminhada até a loja de produtos fotográficos para comprar filme pra uma máquina analógica. E, bem, eu tenho hábito de caminhar, sou bem daquele tipinho que diz que não faz sentido ter carro e o cacete a quatro. Mas lá estava eu esbaforido, escorado num banco de praça pra tomar um ar. Pra completar, no fim do dia, veio a febre e, com ela, a dor no corpo, especialmente nas costas e articulações, a dor de cabeça, a fraqueza, a indisposição e a garganta começando a incomodar. Como bom hipocondríaco que sou, já tinha um teste de covid à mão em casa e o fiz. Deu negativo.


Fui duas vezes a um pronto-atendimento. Na primeira, o médico atendia à instituição brasileira do “deve ser uma virose”: “Dipirona, um spray de própolis e dá uma descansada”. Como nada disso adiantou muito e eu cheguei a medir 39ºC de febre numa noite, retornei. Agora o médico era outro. “É, não tem muito o que fazer, Lucas. Continua com o tratamento e qualquer coisa retorna em 24… 48… ou 72 horas”. De uma precisão hemingwayniana, não é mesmo?


Em alguns dias, de fato, febre passou, mas a indisposição permanecia e a garganta havia piorado. De um dia pro outro, eu estava completamente sem voz, com uma tosse de cachorro e uma inflamação no siso que chegou ao ponto de inchar meu pescoço (e é claro que eu cogitei que fosse caxumba). Mais uns dias se passaram e agora eu tinha dificuldade não só para engolir a comida, mas para degluti-la.


Na certeza de que o que quer que eu tivesse não iria se resolver naturalmente, fui atrás de algum médico que conseguisse estabelecer alguma comunicação entre dois ou mais neurônios. Foi então que consultei com a doutora House, que disse que não é lúpus, mas que, aparentetmente, se tratava de um quadro viral que não foi bem tratado e se desdobrou numa infecção bacteriana. Um pouco de amoxilina, corticoides, antialérgicos e uma suplementação de vitamina D resolveria.


ree

Enquanto tudo isso acontecia, eu não parei de trampar. É bom dizer que, na empresa em que trabalhar, final de ano é uma verdadeira hecatombe. Muita coisa pra colocar em ordem na casa, muito material de cliente pra adiantar... Então, dá pra imaginar que eu não conseguiria tempo para voltar aqui, certo? Tenho muitos planos do que publicar, muitas anotações nos meus caderninhos, muitos textos já em rascunho no Substack, mas no fim do dia estou sempre moído e mal tenho cabeça para entrar no meu vórtice infinito de escrita e revisão. Enfim, fé de que o recesso de final de ano vai curar tudo.


Enquanto isso, continuo aqui, tranquilo e infalível como Bruce Lee.


Os recadinhos da paróquia continuam os mesmos, pessoal. Se você gosta desta newsletter, considere compartilhar com mais pessoas. Apesar de trabalhar com marketing, sou péssimo nessas coisas e não faço ideia de como divulgar isso aqui. Então, conto com o boca a boca de vocês.


Se achar que vale a pena, deixe um comentário no Substack. Se quiser, compartilhe alguma angústia oculta comigo através deste aplicativo duvidoso de perguntas anônimas ou pelo e-mail: lucasfreitasdarosa@gmail.com


Estou planejando responder algumas perguntas que recebi, inaugurar uma espécie de sessão de cartas inspirada nas que existiam nos gibis que a gente lia. Também quero sortear um livro agora em janeiro, mas ainda não sei como fazer isso. Tô pensando em algo que coroe um esquema de pirâmide: traga três amigos para assinar a newsletter e concorra ou qualquer coisa assim. Sei lá. Se tiverem ideias, escrevam.


E, se você está lendo isso, mas ainda não se inscreveu, para com essa porra aí, mermão. Se inscreve logo. Fim do intervalo comercial. Boa leitura.

ree

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2023.


Mãe,


Cá estou, firme e forte no Rio de Janeiro. Anteontem, quando bati o olho numa caixa de estalinhos “Guri”, me deu um clique na cachola. Tive uma espécie de dissociação e fiquei me perguntando se já tinha voltado pra casa. Lembra, mãe, daqueles estalinhos que eu comprava quando criança, ou melhor, quando guri? A gente joga no chão e faz um estouro, assusta todo mundo.


Peguei a caixinha, e meus olhos percorreram ela de um lado a outro. A fabricação era em Itaguaí, região metropolitana do Rio de Janeiro. Como é que pode? E ali do lado tinha uma caixinha de outra marca, quase mesma embalagem, um cartum de um menino travesso. “Muleke”, escrito assim mesmo, com u e k. Fabricado em Santo Antônio de Jesus, na Bahia.


Menino, garoto, moleque, piá, guri. Tem uma pá de palavras pra falar disso. O que me espanta é uma marca carioca usar “guri”. Aliás, deixa eu te contar, mãe, é uma palavra indígena, vem do tupi e significa “bagre novo”. Não sei, deve ser ignorância minha, talvez o povo daqui use essa palavra e a gente nem imagina. É o Rio, não é? Tem de tudo por aqui.


Lembro que, nos gibis, o habitual era traduzir you do Batman ou do Super-Homem como você. Se fosse um personagem mais jovem ou com uma fala mais informal, como o Homem-Aranha, ele dizia cê ou ocê. Mas o Wolverine falava tu e guri. Sempre achei que é porque pro pessoal do sudeste soava como jeito meio bronco de se falar.


Gibi, inclusive, é outra boa palavra, mãe. Num passado muito distante, era usada para se referir a “menino negro”, “moleque” ou “negrinho”, muitas vezes de forma pejorativa. Acontece que se tornou sinônimo de revista em quadrinhos depois de uma revista esse título fazer muito sucesso.


Sabe, mãe, botar o pé pra fora de casa é também se aventurar numa nova gramática. Deixa eu te contar, talvez talvez você não saiba mas existe uma grande guerra cultural entre Rio de Janeiro e São Paulo para estabelecer a nomenclatura correta de um certo alimento farináceo: biscoito (o s deve ser pronunciado chiado) ou bolacha.


É curioso porque a polêmica não faz sentido algum para quem não é carioca ou paulista. Para quem nasceu no Rio Grande do Sul, e eu acho que você concordaria comigo, mãe, bolacha é tudo aquilo que é achatado, como as bolachas Maria; e biscoito é o que tem outros formatos, como os biscoitos dentinho. E, bom, agora fico me perguntando se esse pessoal conhece os biscoitos dentinho. Talvez eu precise trazer um pacote de Kloppenburg na próxima.


Numa dessas saídas por aqui, encontrei o Wendell, um colega de trabalho. Aí, como quem não quer nada, começamos a discutir as diferenças culturais. E, olha, ele foi bem enfático: “Peraí, mas a feijoada que vocês fazem é com feijão preto, não é?”. Dado o tom com que a conversa foi tomando, imagino que se eu discordasse, é possível que ele se levantasse e fosse embora.


Bom, é com feijão preto que a gente costuma fazer realmente, mas o que me deixa encasquetado é que existe o tal feijão carioquinha, mas eu não vi ninguém comendo ele aqui.


O que eu lembro é de ver o pessoal comendo feijão carioquinha mais em Minas Gerais. Mas o que mais me espantou lá é que o pessoal não costuma chamar de “trago” aquela golada na cerva, mas uma puxada de cigarro — o que faz muito sentido, é claro.


Ouvi dizer que aqui no Rio chamam o encanador de bombeiro. E, quando você chama o cara, é possível que ele apareça na porta do seu apartamento sem nem pedir licença. Em São Paulo, o entregador do iFood ou de qualquer coisa não sobe o prédio de jeito nenhum. Se você vai visitar alguém, é um trampo, precisa passar por uns dois portões e ficar meio enroscado lá no meio, fazendo malabarismo pro porteiro te reconhecer.


No Rio, o porteiro descobre que tu é do Rio Grande do Sul, é capaz que faça algum comentário sobre o Renato Gaúcho e o Grêmio antes de te deixar subir pro apê.


Mas uma das coisas que me anima aqui é a comida. É um pouco bobo, mas a gente não encontra coisas como quiabo e jiló dando sopa por aí. em uma variedade de comer que é de fazer inveja. Tem lugares em que um pastel que pode custar 4 reais e outros onde o mesmo pastel custa quase 40, especialmente na beira da praia.


Ah, e olha só, tô quase pedindo pra tu mandar umas roupas, porque tô engordando muito, o que deve ser sinal de que estou com saúde para você e minha avó.


Os estalinhos de que eu falei eu encontrei num lugar que eles chamam de Saara. Para os estrangeiros, digamos que é uma espécie de 25 de Março do Rio de Janeiro. no passado, dei uma de turista desgovernado, queria achar um restaurante chinês na Sete de Setembro, e acabei fazendo um tour involuntário, passei até pela sede do PDT, sem querer. Nos embolamos no meio do povo e fui parar no Saara, foi uma zorra. Era final de semana, impossível achar a saída daquele lugar.


Mas dessa vez, numa boa, dia de semana, foi mais tranquilo. É um lugar que dá pra achar de tudo: brinquedos, roupas, bijuterias, quinquilharias em geral, tudo com preço camarada, até o almoço que mandamos lá no self service, cheio de legumes e um valor ok.


Nesse dia, eu tava no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro fuçando no acervo deles, pesquisando sobre essa coisa da greve dos dubladores em que estou trabalhando. Achei umas coisas interessantes por lá, depois te conto tudo nos detalhes. O museu fica na Lapa, pertinho dos arcos, um caminho quase reto pro Saara. Fiz até um horário de almoço e rumei lá de sandálias franciscanas. Depois voltei, fiz mais um expediente de pesquisa e oltei quase numa linha reta pra chegar no apartamento, passando por Glória, Catete e finalmente o Flamengo (será que esqueci de algum bairro?). Na Zona Sul, dá pra fazer quase tudo a pé e numa boa.


Mãe, poxa, desculpa pela demora pra te escrever. Juro que tava aqui matutando, quase botando as palavras no papel, mas sou tão distraído que no meio do caminho lembrei que nem tinha começado. Às vezes, até esqueço de me envergonhar por esses vacilos.


Todo mundo só fala desse ciclone extratropical que atacou o norte do Rio Grande do Sul. Na vida real, pessoas geralmente perguntam onde fica Bagé e se foi afetada de alguma forma. Já na internet, cê não faz ideia, a gente vê cada coisa… Parece que estou exagerando, mas tem gente fazendo pouco caso ou dizendo que gaúcho é tudo fascista mesmo. Falam dos votos pro Bolsonaro, das células neonazistas, da imigração alemã e italiana...


É claro que há uma fatia de verdade nisso, mas há também um bom naco de verdade naqueles que lembram da população negra gaúcha, de como é o estado com maior número de terreiros de religião de matriz africana, dos anarquistas (os mesmos imigrantes italianos e espanhóis), e até mesmo do trabalhismo e de Brizola.


Aliás, Brizola é um capítulo à parte. É difícil encontrar um carioca que não lembre com afeição do velho. O nome dele ainda vive numa palavra que falam de vez em quando, os “brizolões”, e sempre traz consigo uma lembrança de um passado com projetos de futuro, um tempo otimista — ainda que não tenha se concretizado.


Bom, já já eu pego o voo para Belo Horizonte e é uma sensação esquisita de deixar isso aqui pra trás, sabe? Por onde eu passo a vida está acontecendo. Eu vou embora e a vida segue acontecendo.


A bênção do teu guri,


Lucas.


P.S.: Lembrei que hoje é feriado aí. Aqui no Rio de Janeiro, o pessoal nem sabe o que é o 20 de setembro, mas se bobear, eles transformam qualquer feriado em desculpa para uma boa festa na praia. Mãe, esse Brasilzão é enorme. É tão grande, é besta quem acha que consegue segurar todo esse país nas mãos. ■


* Texto publicado original em 18 de dezembro de 2023, na plataforma Substack.

 
 
 

Comentários


bottom of page