Registro Módico #2
- Lucas Rosa
- 6 de nov.
- 7 min de leitura
We are the world, we aren't the bagé

Não é um bom sinal quando um filme pode ser resumido em um fio do Twitter. E não tem jeito, esse é o caso de «The Greatest Night in Pop». Se estamos falando da noite que mudou o pop, como o título brasileiro sugere, então o filme certamente não mudou em nada o panorama do streaming. É apenas mais um adição irrelevante ao catálogo da Netflix.
É só um filme sem cheiro nem sabor que está aí para preencher o calendário de lançamentos da plataforma e que deve ser facilmente esquecido nas próximas semanas. Ou alguém aí ainda se lembra de «Os Beatles e a Índia», produzido para o HBO Max?
A impressão que fica é a de assistir a um documentário feito para televisão, daqueles que seriam transmitidos pela TVS num final de tarde de uma terça-feira nos anos 80 e que seria anunciado com uma narração grandiloquente como esta.
«We Are The World», composta por Lionel Richie e Michael Jackson e gravada por mais de quarenta cantores norte-americanos, se tornou um marco na história da música e da cultura pop.
Lançada em março de 1985, a música rapidamente dominou as rádios e as paradas musicais. No lado B do disco de vinil de 45 rotações que continha o single, tínhamos «Grace», composta por Quincy Jones. O sucesso logo se espraiou para outros formatos, como fitas cassete e LPs. O videoclipe, comercializado em fitas de vídeo (e posteriormente em DVDs e Blu-Rays), impulsionou ainda mais sua popularidade. Por fim, a marca que se tornou USA for Africa derivou todo tipo de quinquilharia, incluindo pôsteres, camiseta, bottons, etc.
No Brasil, não houve exceção. De maio a agosto de 1985, a canção figurou entre as 10 mais pedidas da Rádio Cidade, do Rio de Janeiro, e teve o LP no primeiro lugar da lista dos mais vendidos, de acordo com as pesquisas realizadas por Nelson Oliveira Pesquisa e Estudo de Mercado (Nopem). Ao fim do ano, diversas estações de rádio consideraram-na a música internacional mais pedida do ano.
O videoclipe foi exibido em estações de vídeo públicas, em museus e, ao longo dos anos, foi repetidamente reprisado em inúmeros programas de televisão. Para uma geração, foi um dos clipes mais marcantes do DVD pirata «O Melhor do Flash Back: 92 Clipes para Recordar».
Pop, mas com elementos de gospel e soul, We Are The World tem uma melodia ondulada, com um fraseado que oscila, ascende e descende, contrastes de dinâmica e uma variedade de timbres vocais. Segue uma receita simples, tem uma letra simples, se apoia em instrumental básico que dá suporte para que os vocais se destaquem. O resultado, mesmo que soe piegas ou cafona, impressiona ainda hoje. Seu tio palavroso, sua avó e aquele amigo chato que gosta de Bob Dylan, quase todo mundo acaba gostando.
Tudo isso e quase ninguém sabe que tinha um brasileiro na gravação. Paulinho da Costa, que, entre outras mil coisas, já havia feito a percussão de «Human Nature» e «Wanna Be Startin' Somethin'» de Michael Jackson, tocou “algumas madeiras, fazendo som de palmas, e um pandeiro de rock” durante as sessões de gravação do instrumental de We Are The World. Mas isso é outra história. Surpreendentemente, sobre essas gravações, quase ninguém fala — inclusive o documentário.
Para muitos jovens e tuiteiros (e jovens tuiteiros), aliás, foi, através do recente documentário, que o meme do Bob Dylan monocórdio em meio ao coro de We Are The World foi finalmente explicado. Porque é isso; é tudo meme, thread, vídeo de explicação, react.
Eu não consigo ver sentido algum na comoção que esse documentário tem causado. O valor dele não está em si, mas no seu tema, na canção sobre qual ele resolveu falar.
Em termos de informação, o documentário não traz quase nenhuma novidade. A maior parte das imagens que fui vendo ali lembro de ter ficado sabendo através do making of do DVD de We Are The World. As imagens do ilustre pessoal gravando os vocais, errando e acertando, estão literalmente no YouTube. Quase todos eles, inclusive o Quincy Jones, já deram um milhão de entrevistas, as quais comentaram suas impressões mais gerais sobre o projeto.
Qualquer um que tivesse feito uma pesquisa mínima toparia com uma dezena de matérias que contavam que o Bob Dylan não estava chapado, como muitos comentam no Twitter, mas incomodado com seu timbre e jeito de cantar e as possíveis comparações que viriam disso.
É verdade que as imagens de arquivos guardam em si uma luminosidade alucinante. Estamos falando de ver alguns dos maiores artistas da música de pop de seu tempo despidos de artifícios, sem encenações, alguns claramente admirados com a reunião, outros visivelmente nervosos. Cyndi Lauper agita seus colares e pulseiras durante a gravação, Huey Lewis, substituto de última hora para Prince, luta para alcançar o tom correto, e Al Jarreau, visivelmente embriagado com vinho, segura um copinho durante a gravação do coro.
Há depoimentos comoventes, como quando Kenny Loggins se indaga: “o que fazer depois de Bruce Springsteen?” ou quando algum dos entrevistados lembra que, ao fim das gravações, Diana Ross chorou e disse que “não gostaria que aquilo terminasse”. Em certo momento, a rivalidade de Michael Jackson com Prince ganha destaque na narrativa, alimentando a especulação sobre “e se” Prince tivesse participado — o que é bastante sedutor, mas não sustenta. Mas tudo, tudo isso já está bem resumido nas resenhas do documentário afora. Será que ainda vale a pena assisti-lo?
(E o filme sequer faz menção à apresentação ao vivo de We Are The World em 1995 no American Music Awards, onde Prince, apesar de estar no palco ao lado de Quincy Jones, se recusou a cantar e ficou o tempo todo com um pirulito na boca).
Talvez informação de que Sheila E. foi convidada para cantar por ser namorada de Prince, na esperança de atraí-lo para a gravação, pudesse ter trazido mais camadas ao documentário, mas é mal explorada e tratada com superficialidade. A edição tenta conciliar esse conflito, mas sem sucesso. Inclusive, ao fim, a montagem ainda se esforça para trazer um desfecho até mesmo conciliador para esse conflito.
O grande potencial do filme seria ter trazido uma contextualização mais aprofundada das informações que pipocam em tela, mas falha nesse aspecto também. Infelizmente, conta apenas com um punhado de depoimentos dos artistas envolvidos (apenas Lionel Richie, Huey Lewis, Cyndi Lauper, Sheila E, Dionne Warwick, Bruce Springsteen, Smokey Robinson e Kenny Loggins, alguns mais inspirados que outros).
A ausência de figuras importantes como Stevie Wonder, Paul Simon, Billy Joel, Steve Perry, Daryl Hall e Kim Carnes é notável. É claro que a essa altura do campeonato seria improvável obter depoimentos de gente como Bob Dylan ou Willie Nelson, mas a falta que faz Quincy Jones, que aparece apenas em imagens de arquivo, se manifesta na pobreza que é o saldo final desse documentário.
A narrativa é árida e pouco sutil. Sendo assim, não é surpresa que as cabeças pensantes de The Greatest Night in Pop tenham optado pela contagem regressiva como elemento estruturante da história.
Além disso, a maneira como as imagens gravadas posteriormente são sobrepostas às imagens da gravação real me incomodou profundamente. Não se trata de pôr lado a lado uma porção de imagens que formam um mosaico contextual da história que está sendo contada (nesse aspecto, o filme é pobre e quase exclusivamente utiliza imagens dos bastidores da gravação e do American Music Awards de 1984, apresentado por Lionel Richie); trata-se de, depois de recuperar uma imagem de arquivo, sobrepor uma imagem simulada — isto é, m outras palavras, uma composição, um simulacro ou uma manipulação.
Já tinha visto esse recurso em «Still: A Michael J. Fox Movie», de 2023, filme que, aliás, contta com alguns dos mesmos profissionais dessa produção. Ali, o recurso funciona melhor, já que as simulações são costuradas com imagens dos filmes e séries de Michael J. Fox, evidenciando a natureza ficcional do discurso.
A impressão que dá é que pegaram os direitos dessas imagens e resolveram fazer qualquer coisa pra depois investir numa campanha de marketing e pegar otário. Eu concordo com o Thiago Barata, acho que esse é o documentário dos sonhos de qualquer documentarista. Mas isso não significa que é um bom documentário, porque nem de longe é o meu documentário dos sonhos para assistir.
Faltou alguém como Quincy Jones, que desse um propósito pra essa produção para além preencher o catálogo da Netflix e que dissesse para os artistas e marqueteiros deixarem seus egos da porta pra fora.
O filme tem a qualidade de um vídeo de YouTube com título “Explicando We Are The World”, mas com orçamento milionário. ■
Ao Marcos, mineiro expatriado em Pelotas, que, numa das minhas caixinhas de perguntas do Instagram pediu por um “resumo de Bagé nesse ano”, uma resposta troncha, já que não me considero a pessoa mais apropriada para tal diligência. Sobre esse município, que por vezes me encontro, sei tanto quanto sei de física quântica ou da escalação do Grêmio.
As razões que antes me levavam a considerar satisfatória a vida em Bagé parecem estar desaparecendo conforme o tempo passa. De uns anos pra cá, me desinteressei quase por completo pela cidade. Eu nem sei direito o que acontece em Bagé. Embora ainda seja um lugar agradável para dar algumas caminhadas sem compromisso, está se tornando cada vez mais opressivo e difícil encontrar um local para relaxar e conversar qualquer coisa com as pessoas. No fim das contas, boa parte dos lugares e das pessoas já não me diz respeito. A cidade tem, é claro, uma porção de cantos que vivem no meu coração e está cheia de gente nova e velha que é muito bacana, empenhada em fazer com que se torne um lugar mais respirável, gente fazendo coisas, pensando coisas, proporcionando boas conversas. É preciso estar atento a isso tudo e, sei lá, pensar um pouco de onde e pra onde se está olhando. Mas tanta gente se mandou, não faço ideia do que sobrou.
Por hoje, é isso. ■
* Texto publicado original em 14 de fevereiro de 2024, na plataforma Substack.




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