top of page
Buscar

Registro Módico #1

Deu pra ti, 2023. O último a sair apaga a luz.


Olá, pessoas.


Como vão as coisas aí do lado de vocês?


Chegamos, então, naquela empolgante primeira semana de trabalho do ano — momento que sempre me lembra que meus números da Mega-Sena não foram os sorteados.


Enquanto eu aguardo a sorte me chamar e, assim, me dar a oportunidade de fugir para o destino mais remoto que eu conseguir encontrar, cá estou eu, vivendo um contratempo dos meus delírios.


E é isso, né, rapaziada: estamos oficialmente em 2024. Que ano, ein? Já estou cansado.


Graciliano Ramos e o Mickey entraram em domínio público, Zagallo morreu (tem treze? talvez catorze letras), o Monark foi banido do YouTube e o Big Brother já começou trazendo uma série de confusões envolvendo capacitismo, racismo, misoginia e até veganismo (um terreno fértil para os tumultos no Twitter).


Eu juro que até pensei em fazer uma edição especial de retrospectiva do ano passado, mas o único destaque que consegui lembrar de pronto foi a declaração de apoio do FHC ao Lula, que, na verdade, aconteceu em 2022.


Então, bem, seja bem-vindo a mais um fascículo da newsletter da Estação Godot, seu folhetim da sociedade pós-industrial, o primeiro do ano.


Seguinte: ao longo das edições da newsletter, alguns leitores foram enviando perguntas e comentários variados, o que sempre percebi como uma oportunidade de criar um espaço mais dialógico. Por isso, reservei um tempo para atender a todos.


Gosto muito das perguntas e dos comentários que recebo por aqui. Se você quiser participar da próxima edição, sinta-se à vontade para deixar um comentário abaixo, enviar um e-mail para lucasfreitasdarosa@gmail.com ou escrever anonimamente no NGL.


Aos poucos, eu vou compilando e respondendo.


Antes de mais nada (um dos meus oxímoros favoritos), preciso de comentar sobre uma coisa com vocês.


Em maio de 2021 (curioso como todos os textos institucionais mencionam 2022, mas, ao revisitar minha caixa de entrada, passei a suspeitar que as discussões começaram antes), eu conversava com a professora Clara Dornelles sobre um projeto dela que vinha se desenhando de forma bem modesta. Não recordo exatamente como o assunto surgiu, nem por que estávamos trocando mensagens na ocasião, mas provavelmente era uma conversa relacionada às nossas experiências durante a pandemia.


Foi quando ela compartilhou comigo o seu desejo de transformar em livro o relato de uma imigrante venezuelana que havia conhecido por meio de um projeto de extensão da Unipampa dedicado ao ensino de língua portuguesa para estrangeiros.


Conversa vai e conversa vem, sugeri que o projeto fosse tratado como algo voltado para um público mais amplo, não necessariamente acadêmico, porque acreditava que era uma história capaz de tocar a qualquer um que se permitisse ser tocado. Nesse sentido, a Clara sempre enfatizava como uma narrativa desse tipo interessaria não apenas aos pesquisadores de aquisição da linguagem, mas também a sociólogos, antropólogos e jornalistas.


Daí em diante, confesso que minha contribuição foi mais na base do dar pitaco, porque minha vida tem sido uma correria danada. Mas eu tentei acompanhar todas as etapas e participar de todas conversas que pude. Fiz o que eu sei fazer, que é dar umas opiniões; até porque tem um monte de gente bacana tocando o projeto. Sigo aparecendo de vez quando e dando uma opinião ou outra, e devo ainda contribuir com o fechamento do livro, na diagramação, sem qualquer qualificação para isso, exceto a de bibliófilo.


ree

“¿Cuándo te volveré a ver?” é um relato escrito por Flor María López Rodríguez, uma mulher venezuelana que testemunhou sua vida ser virada de cabeça para baixo em meio a uma brutal crise econômica e política de seu país. Em busca de uma saída, ela partiu para o Brasil com sua família, seu marido e filhos. Trata-se de uma viagem marcada pelo peso de deixar para trás uma vida inteira e recomeçar.


Várias vezes, enquanto li e reli o texto de Flor (e foram muitas), me vi perguntando que tipo de força interior era preciso para fazer isso. Por vezes, em dias mais difíceis, fiquei pensando se a vida realmente permitia um recomeço tão grande. No entanto, o livro parece dizer que sim, que estamos sempre recomeçando — ainda que isso não signifique que o passado pode ser apagado.


Pelo contrário, tudo é impermanente, exceto o que vivemos — uma noção que parece viva na tessitura do texto de Flor, que começa em espanhol e aos poucos adquire o sotaque do português brasileiro, assim como seu português ganha o sotaque do espanhol venezuelano.


A escolha do título, em espanhol, não é ao acaso; trata-se de um momento da narrativa em que um familiar questiona a respeito da falta a falta que viveria, que não vivera, que sentiria, que ainda não sentira. É um livro, entre outras coisas, sobre como a ausência nos constitui. E isso não implica em uma entrega ao derrotismo; a visão de Flor é otimista. A falta de algo nunca será preenchida pelas novas experiências, mas nos oferece uma perspectiva diferente para enxergar cada passo que damos.


Para saber mais sobre a história de Flor e seu livro, e conhecer algumas pessoas envolvidas no projeto, recomendo assistir à excelente matéria que Fernando Couto fez para a TV Câmara.


Atualmente, o projeto está em financiamento coletivo pelo Catarse, e sua ajuda é fundamental. Todos os lucros obtidos com a venda do livro serão destinados a Flor Maria Lopez. Ela manterá seus direitos autorais e terá todo o retorno financeiro. A meta é alta, mas quem entende do mercado editorial sabe como está caro produzir um livro no Brasil hoje, e a campanha já alcançou 15% da meta. Sua colaboração pode fazer a diferença. Há recompensas para contribuições a partir de 20 reais. O link para o Catarse é este aqui. Tem também um Instagram oficial do projeto, que o pessoal tá sempre atualizando. Segue lá: @livrodaflor



Um(a) camarada anônimo(a) perguntou: “Nada mais pertinente do que começar pelo início: o que é uma newsletter?


ree

Nessa altura do campeonato, acho que você e todos já foram apresentados a este gênero (ou hipergênero — um aceno a algum eventual pesquisador de Linguística Aplicada que esteja lendo).


Dependendo da sua idade, anônimo, é bem provável que você já tenha tido um blog ou, pelo menos, tenha tido hábito de ler alguns. Eu, mesmo sendo um zero à esquerda em programação, códigos e afins, tive vários em plataformas comuns na época, como o Blogspot e o Wordpress.


E, sabe, por muito tempo, fiquei de canto, só vendo as redes sociais se criarem e ocuparem cada vez mais espaço na internet e na nossa vida, agora permanentemente online, sempre com seus feeds intermináveis (a reinvenção do papiro, como costumava dizer o Jô Soares).


Nunca consegui achar legal ou me acostumar com a ideia de passarmos de navegar entre hyperlinks para o que vivemos hoje, deslizando sempre uma mesma página.


Saímos de um cenário em que cada pessoa tinha sua própria página, com cores, fontes e designs sempre diferentes, para nos encontrarmos em telas uma igual a outra, mostrando uma sequência infinita de conteúdos determinados por uma infinidade de cálculos que decidem o que a tela vai mostrar para nós. Alguns incautos costumam dizer ainda que a tela nos conhece melhor do que nós mesmos. E, claro, como se não bastasse, toda essa curadoria vem sempre acompanhada de anúncios publicitários salpicados aqui e acolá.


Por essas e outras, as newsletters me parecem um respiro nesse sufoco que se tornou a internet. Para mim, é uma forma de criar um canal de publicação e comunicação mais direto e pessoal, sem anúncios e algoritmos.


Mas e você, anônimo, me diga: o que está achando de ler esta newsletter?


Ah, numa outra oportunidade, eu venho aqui pra dividir algumas que eu tenho hábito de ler. ■



O Eduardo me enviou uma mensagem indagando sobre a pesquisa à qual faço referência em alguns dos textos e mencionando de forma lacônica em conversas de bar e stories do Instagram.


Bom, vamos lá.


Já faz algum tempinho que eu tenho trabalhado numa pesquisa sobre dubladores (ou atores-dubladores ou atores em dublagem) brasileiros atuantes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que protagonizaram um movimento de paralisação de seus trabalhos por cinco meses em 1978.


Há quase nada disso documentado nos livros de História com H maiúsculo do Brasil. No ‘Dicionário de datas da história do Brasil’, organizado por Circe Bittencourt, por exemplo, há uma breve, mas significativa menção, à greve dos dubladores no capítulo intitulado ‘Greves de 1978 – 12 de maio de 1978’, de Kazumi Munakata. “A imprensa também noticiou uma greve dos dubladores, iniciado, de modo pioneiro, em março – mas não se sabe sobre o seu resultado”.


Como em toda greve, houve aqueles que continuaram trabalhando, dissidências no decorrer dos eventos, oportunidades exploradas por quem buscava se estabelecer no meio. E, claro, retaliações por parte das empresas, inúmeras rodadas de debates entre representantes governamentais, empresariais e trabalhadores.


Dubladores cariocas: Luís Manoel, não identificado, Maria Alice Barreto, Orlando Prado, Isaac Bardavid, Joaquim ‘Luís’ Motta, Ribeiro Santos, Pádua Moreira, não identificada e Mário Monjardim.
Dubladores cariocas: Luís Manoel, não identificado, Maria Alice Barreto, Orlando Prado, Isaac Bardavid, Joaquim ‘Luís’ Motta, Ribeiro Santos, Pádua Moreira, não identificada e Mário Monjardim.


Como em muitas greves, havia um descompasso entre os sindicatos e o comando de greve.


Afinal, a mobilização toda aconteceu com uma relativa independências dos sindicatos dos artistas do Rio e de São Paulo. Entrevistando alguns envolvidos, ouvi a conversa de que parte da direção sindical paulista relutava em considerar o ofício de dublador como uma especialidade ou atuação da profissão de artista, mesmo com a regulamentação da profissão de artista em vias de acontecer no mesmo ano.


Na época, havia o entendimento corrente de que o ofício de dublador ainda estava imbricada à profissão de radialista, não a de artista.


Existiam muitas tensões políticas postas na mesa. Alguns afirmam que uma parte da liderança de dubladores do Rio tinham vínculos com uma fração do PCdoB. Enquanto isso, o sindicato de São Paulo tinha uma direção que incluía alguns militantes trotskistas de diversas organizações, como a Convergência Socialista.


Aliás, chamar o evento de greve é, de certa forma, contraditório, pois a maioria dos dubladores era autônoma. Uma liderança da greve chegou a destacar esse paradoxo à imprensa nos primeiros dias do movimento. Ele disse: “esta movimentação não pode ser confundida como uma greve, porque todos os dubladores que estão parados são autônomos, portanto, podem escolher ou recusar trabalho”. (Não te lembra uma coisa?)


Vale recordar que, na época, existia uma legislação rigorosa que proibia categoricamente greves com intenções políticas. Assim como a maioria das paralisações, no rigor da pena, a greve dos dubladores de 1978 tinha uma pauta estritamente trabalhista. Eles buscavam a revisão do acordo de trabalho para reajustar salários e condições.


É claro que a greve permitiu que se entrasse em pauta, por exemplo, também a discussão de temas como direito autoral e censura, assim como as dinâmicas do mercado cinematográfico brasileiro diante da concorrência com produções estrangeiras.


Enfim, é um evento que é atravessado também por uma infinidade de ourtos eventos da história da cultura popular e/ou de massa do Brasil: da televisão, do teatro, do rádio, do cinema, da música e, é claro, da própria dublagem, que já estava incorporada no cenário brasileiro por meio de uma estrutura industrial há cerca de duas décadas.


Por isso, pesquisar sobre a greve dos dubladores de 1978 passa também, é claro, pela obrigatoriedade de entender a política do período, a repressão, a censura, as ações em relação à cultura, às organizações de trabalhadores, mas também o aspecto econômico do país, a inflação, etc. Até porque tudo isso está relacionado.


ree

Bom, nesse meio tempo, eu compilei material considerável de periódicos da época, uma vez que a greve recebeu uma boa cobertura da imprensa. Não teve veículo que tenha ignorado aquilo. Eu tenho comigo um volume muito grande de recortes que vão de Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, Jornal do Brasil à Revista Veja, Manchete, Playboy e O Pasquim. Muito disso eu levantei nos repositórios digitais dos próprios veículos e na Biblioteca Nacional. Tenho também acesso a alguns documentos da censura, do DOPS/DEOPS, além do Serviço de Inteligência Militar.


Nas duas vezes em que estive em São Paulo e no Rio de Janeiro, explorei arquivos, museus, instituições e arquivos pessoais, ampliando ainda mais meu acervo. Também estabeleci contato com emissoras de televisão, de onde recuperei material audiovisual relacionado à greve. E continuo fazendo novos contatos para expandir ainda mais meu acervo.


Além disso, há muito tempo venho conversando com muitos dubladores que participaram da mobilização na época, bem como alguns que não participaram, mas têm recordações de momentos antes e depois. Conversei com aproximadamente sessenta pessoas, numa média de três entrevistas com cada uma. Às vezes, conversas gravadas, mas nunca estruturadas como entrevistas formais, porque vou levando como uma conversa.


E o que é que eu vou fazer com isso tudo? Bueno, a verdade é que eu ainda não sei exatamente.


Na medida em que fui me envolvendo com esse projeto e suas histórias, vislumbrei a possibilidade de transformar em um livro, já que acreditava que era algo para ser lido confortavelmente em um sofá. Só de pensar em escrever um capítulo sobre metodologia ou fundamentação teórica tenho calafrios. Não que eu não tenha rigor na condução da pesquisa, mas o que eu gostaria é alcançar um leitor que não necessariamente possui interesse acadêmico no tema.


No entanto, sendo honesto, transformar esta pesquisa em um trabalho acadêmico poderia me viabilizar, inclusive, do ponto de vista econômico, além de me permitir instrumentalizar certos conhecimentos que ainda estou me familiarizando na análise dos documentos. Enfim, a resposta é: ainda não tenho a menor ideia. O que você sugere?


Ah, você pode ler uma espécie de preâmbulo para essa história, que escrevi aqui mesmo na newsletter. Para isso, clique aqui. ■



A propósito, preciso contar sobre uma peça que assisti em São Paulo.


«A Tropa», protagonizada por Otávio Augusto e com elenco composto por Alexandre Menezes, Daniel Marano, Alexandre Galindo e André Rosa, de direção de Cesar Augusto e com texto de Gustavo Pinheiro, fez uma temporada curta em São Paulo, no Teatro Vivo, na Vila Cordeiro, entre 31 de agosto a 8 de outubro de 2023.


Muito do meu interesse em assistir ao espetáculo estava na oportunidade de presenciar o trabalho de ator do Otávio Augusto.


Otávio ocupava a posição de presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (SATED) do Rio de Janeiro em 1978, durante a greve dos dubladores que mencionei na resposta anterior.


Eu já havia feito uma entrevista por e-mail com ele, intermediada por sua assessora, e estava ansioso pela peça. Já em 1978, Otávio era uma figura de grande importância e respeito no meio artístico, e seu nome aparece não apenas nas conversas, mas também em um sem-número de documentos da época.


Embora tenha sido uma presença frequente na televisão nas últimas três décadas, me lembro dele sempre em papéis secundários, os quais tenho dificuldade de recordar qualquer coisa. No entanto, eu sabia que ele era um ator excepcional, não apenas pelo que lia, mas também pelo que testemunhei em suas atuações no cinema, especialmente em «Sábado» (1995) e «Cara ou Coroa» (2012), dirigidos por Ugo Giorgetti.


ree

O enredo de «A Tropa» é simples: um militar aposentado e idoso sofre uma queda, fratura-se e é hospitalizado. Durante sua internação, recebe a visita dos quatro filhos, transformando o encontro, inicialmente motivado pelo estado debilitado do pai, em um acerto de contas familiar.


Otávio Augusto está imponente, interpreta um personagem que passa todo o espetáculo confinado a uma cama de hospital, o que confere a cada um de seus movimentos um peso dramático imenso.


Em cartaz desde 2016, a peça metaforiza de maneira impactante a fratura que o Brasil estava vivenciando naquela época: um país que não tem mais acordo, a falência do projeto petista, isto é, a ilusória governabilidade, e a democracia de baixa intensidade, como diz o professor Paulo Arantes, que nos foi entregue não seja uma vitória à esquerda, mas uma missão cumprida com sucesso pelos militares.


Em tempos como os que estamos vivendo, de um otimismo petista patológico, uma peça como essa é ainda mais atual e importante. ■



Muita gente perguntou do meu estado de saúde depois da publicação do último fascículo desta newsletter. Estou bem. Toda a indisposição passou, e agora permanece apenas um pigarro, uma tosse e uma rouquidão intermitente. A médica afirmou que é algo normal e recomendou mais alguns antibióticos para lidar com isso. Eu, como bom brasileiro, optei por uma pausa no tratamento para poder beber nas festas de fim de ano e ainda não voltei.


Tem muito mais coisa que eu gostaria de escrever aqui, mas já me estendi demais. Fica pra próxima.


Abraços,


Lucas.

* Texto publicado original em 12 de janeiro de 2024, na plataforma Substack.

 
 
 

Comentários


bottom of page